domingo, dezembro 04, 2011

.P. deixara de existir

P., tal como eu, entrou para a Escola em 1989 e se nos primeiros anos de escolaridade ele foi passando de ano com facilidade, foi na sua transformação em adolescente que se tornou um rapaz frágil.

P., a partir dos seus 11 anos, já não tinha um corpo, mas sim vários membros que bamboleavam descoordenados. também já não tinha voz, mas sim um timbre estridente e esganiçado que soltava quando tentava falar. P. também já não tinha o olhar terno de menino, mas sim um vazio numa exoftalmia crescente. ninguém chamava P. ao P., pois a sua alcunha era a sua identidade na escola.

P. devia ter qualquer coisa de errado, pois no início de cada ano letivo, sua mãe ía falar com a diretora de turma e esta advertia-nos, em surdina, para a necessidade de estabelecer uma boa relação com P. claro que isto resultava sempre num tratamento diferenciado: os gunas identificavam-no como um ser mais frágil, logo, era carne para canhão, as meninas da comunhão solene tratavam-no como um atrasadinho-coitadinho e os restantes tentavam funcionar indiferenciadamente, acabando por concluir que P. era um atrasadinho-coitadinho perfeitamente apto para se defender dos ataques dos gunas.

o dia-a-dia de P. na escola era uma luta. ora tinha que trepar ao poste para ir buscar a mochila, ora porque tinha os seus sapatos pendurados, ora para fugir de um grupo qualquer de miúdos desocupados e sempre disponíveis para perseguir quem quer que fosse na escola.

em 1996, P. escreveu uma redação sobre o fim da Guerra da Bósnia-Herzegovina, onde destacou os efeitos do frio e da fome quer nos soldados, quer na população. P. teve má nota, porque no 7.º ano não era admissível cometer crimes à ortografia e pontuação. restava-lhe tentar perceber porque é que tinha que estudar Os Lusíadas, uma vez que na sua perspetiva, a ortografia e pontuação também não eram corretas. também não se identificava com estilo épico ou com a glorificação do povo português e mesmo assim tentava vomitar: Os Lusíadas são compostos por 10 cantos, 1102 estrofes decassílabas, num esquema rímico...

em 2002 encontrei P. rodeado de miúdos pequenos e hiper-cinéticos, que ditavam, comandavam as suas ações. tentei cumprimentá-lo, mas as vozes de comando ditaram que ele devia apalpar a miúda...

domingo, junho 12, 2011

.esperança

enquanto sentada na poltrona da buganvília, observava o azul esbatido do céu e o vento a soprar por entre a folhagem híbrida e vigorosa, enquanto o canto silencioso da sala tocava música simples e leve.

a paisagem verde e colorida, com tempo para crescer para dar provas da sua fecundidade ou apenas generosidade, despertou em mim uma inveja melancólica e amarga. nesse momento, desejei eu poder ganhar raízes, enterrar-me na terra e ser livre na síntese do meu alimento, na minha dispersão. livre por não ter que falar sem dizer o que quero. livre do meu corpo que me obriga a ser o animal que sou.




lembrei-me que um dia...

enquanto sentada na pedra de granito da serra, observei a minha pequenez. arfei durante minutos e todo o ar que expeli fez com que os meus pulmões libertassem centímetros da minha rotina artificial e, nesse dia, sequei o musgo sorrateiro que, pioneiro, ornamentava a fraga.








enquanto sentada na poltrona da buganvília, desejava que sombras invadissem o céu para o cobrir com um manto espesso. desejava que a luz se apagasse durante muito tempo e que, depois de levantado o manto, nascesse uma nova ordem universal, para que eu, pequena e encolhida, pudesse finalmente esticar os meus ramos em direção ao sol e espalhar-me na corrente do vento.

sempre quis ir ao deserto do Gobi.

segunda-feira, abril 11, 2011

.vida no estábulo

artrose intelectual, gelatina cerebral. cliché social no quadrado. ideias? não, apenas sorrisos banais com perguntas ocas, crises existenciais com questões superfluas.

mate-se a poesia, a música, o desassossego e alimente-se um parasita faminto e acessível.

não há remédio, estulta, vaidosa, pequena. não há remédio...

quinta-feira, março 03, 2011

.cromo repetido (tirado de um outro baú)

Encontrei este post num dos meus blogs e, apesar de já contar com pelo menos dois anos, o meu ritual do duche matinal permanece igual...


Torneiras Bipolares

Existe uma coisa que me faz sair da cama com maior rapidez: a visualização do meu duche matinal. Após proceder a este ritual, lá me arrasto para o chuveiro, ainda a saborear o chuveiro onírico dos lençóis da minha cama que teimam em me prender. Abro a torneira de modo a posicionar-se na temperatura que eu quero e mal essa temperatura é atingida, eu atiro-me de cabeça e corpo para o chuveiro, de modo a contemplar com cada célula da minha epiderme, a água e o calor que caem sobre mim.

De repente, a água fica gelada, fujo com o braço esquerdo, o braço direito quase fica roxo, num impulso, viro o manípulo para a posição de temperatura máxima, aproximo desta vez o braço esquerdo e este é surpreendido pela elevada temperatura. Nesta fase, tenho o braço direito roxo e hipotérmico e o braço esquerdo vermelho e às manchas com queimaduras de 3º grau.

Volto a tentar regular o manípulo para a temperatura ideal e mal é atingida...eu volto a imergir no banho com um sorriso estúpido de prazer, enquanto o champô massaja as minhas ideias e cabelo. Já de nariz virado para o chuveiro, enquanto o sorriso estúpido de prazer continua preso à minha face, a água, de repente, vem a escaldar. Nariz às manchas, lábios inchados da temperatura excessiva, cabelo ainda com a espuma do champô. Mudo a posição do regulador de temperatura, a água de imediato fica como pedras de gelo a cair sobre os dedos dos pés, que ficam roxos e presos...

Saio da banheira, exausta e com um braço queimado, outro hipotérmico, os lábios inchados, o nariz vermelho e às manchas, os dedos dos pés inertes e roxos e o cabelo colado com os vestígios do champô.

Há que regular estas torneiras bipolares, senão não há quem queira acordar!

terça-feira, janeiro 04, 2011

.pretensiosamente uma dissertação sobre a solidão

onde começa/acaba a solidão?

não sei se costumam fazer esta pergunta a vocês próprios, mas eu costumo fazê-la muitas vezes, por isso, caí na tentação de experimentar definir o limiar, pelo menos o meu, da solidão, para balizar, orientar as minhas apreciações sobre a mesma.

na minha opinião, a solidão é per se a ausência de interacção, seja por ausência de um "receptor", por indisponibilidade do "receptor", apesar de estar alcançável pelo "solitário", ou por incapacidade de comunicação do "solitário".

depois de ter chegado a esta solução metódica e quase fria e quase tirada de um manual da faculdade, obsessivamente observei quem me rodeia e quem rodeia quem me rodeia e assim sucessivamente, e, aquilo que constato é bem mais complexo, pois todas as variáveis acima descritas como potenciais vírus causadores da solidão estão, na sua grande maioria, absolutamente interdependentes. ou seja, muitas vezes a ausência de um "receptor" pode ser produto ou da indisponibilidade do mesmo ou a consequência da incapacidade de comunicação do solitário, mas... mais dramático ainda, a ausência de um "receptor" pode ser produto da incapacidade de comunicação do "solitário" que leva à indisponibilidade dos eventuais "receptores".

é uma pescadinha de rabo na boca, um ciclo fisiológico com n variáveis, é um sem fim de razões que se atropelam e interceptam com o mesmo à vontade que as infinitas rectas que se cruzam infinitamente no espaço, etc...

é estranho, é complexo, é desconfortável de pensar. mas a mim conforta-me saber que, caso caia na espiral da solidão, poderei tentar quebrar o ciclo e, acima de tudo, é bom saber que, na grande maioria das vezes, está totalmente dependente de nós a interrupção ou a descontinuação do mesmo.

não gosto da solidão a full-time.


"No solitário, a reclusão, ainda que absoluta e até ao fim da vida, tem muitas vezes por princípio um amor desregrado da multidão e tanto mais forte do que qualquer outro sentimento, que ele, não podendo obter, quando sai, a admiração da porteira, dos transeuntes, do cocheiro ali estacionado, prefere jamais ser visto e renunciar por isso a toda e qualquer actividade que o obrigue a sair para a rua."
Marcel Proust, in 'À Sombra das Raparigas em Flor'