P., tal como eu, entrou para a Escola em 1989 e se nos primeiros anos de escolaridade ele foi passando de ano com facilidade, foi na sua transformação em adolescente que se tornou um rapaz frágil.
P., a partir dos seus 11 anos, já não tinha um corpo, mas sim vários membros que bamboleavam descoordenados. também já não tinha voz, mas sim um timbre estridente e esganiçado que soltava quando tentava falar. P. também já não tinha o olhar terno de menino, mas sim um vazio numa exoftalmia crescente. ninguém chamava P. ao P., pois a sua alcunha era a sua identidade na escola.
P. devia ter qualquer coisa de errado, pois no início de cada ano letivo, sua mãe ía falar com a diretora de turma e esta advertia-nos, em surdina, para a necessidade de estabelecer uma boa relação com P. claro que isto resultava sempre num tratamento diferenciado: os gunas identificavam-no como um ser mais frágil, logo, era carne para canhão, as meninas da comunhão solene tratavam-no como um atrasadinho-coitadinho e os restantes tentavam funcionar indiferenciadamente, acabando por concluir que P. era um atrasadinho-coitadinho perfeitamente apto para se defender dos ataques dos gunas.
o dia-a-dia de P. na escola era uma luta. ora tinha que trepar ao poste para ir buscar a mochila, ora porque tinha os seus sapatos pendurados, ora para fugir de um grupo qualquer de miúdos desocupados e sempre disponíveis para perseguir quem quer que fosse na escola.
em 1996, P. escreveu uma redação sobre o fim da Guerra da Bósnia-Herzegovina, onde destacou os efeitos do frio e da fome quer nos soldados, quer na população. P. teve má nota, porque no 7.º ano não era admissível cometer crimes à ortografia e pontuação. restava-lhe tentar perceber porque é que tinha que estudar Os Lusíadas, uma vez que na sua perspetiva, a ortografia e pontuação também não eram corretas. também não se identificava com estilo épico ou com a glorificação do povo português e mesmo assim tentava vomitar: Os Lusíadas são compostos por 10 cantos, 1102 estrofes decassílabas, num esquema rímico...
em 2002 encontrei P. rodeado de miúdos pequenos e hiper-cinéticos, que ditavam, comandavam as suas ações. tentei cumprimentá-lo, mas as vozes de comando ditaram que ele devia apalpar a miúda...
domingo, dezembro 04, 2011
domingo, junho 12, 2011
.esperança
enquanto sentada na poltrona da buganvília, observava o azul esbatido do céu e o vento a soprar por entre a folhagem híbrida e vigorosa, enquanto o canto silencioso da sala tocava música simples e leve.
a paisagem verde e colorida, com tempo para crescer para dar provas da sua fecundidade ou apenas generosidade, despertou em mim uma inveja melancólica e amarga. nesse momento, desejei eu poder ganhar raízes, enterrar-me na terra e ser livre na síntese do meu alimento, na minha dispersão. livre por não ter que falar sem dizer o que quero. livre do meu corpo que me obriga a ser o animal que sou.
lembrei-me que um dia...
enquanto sentada na pedra de granito da serra, observei a minha pequenez. arfei durante minutos e todo o ar que expeli fez com que os meus pulmões libertassem centímetros da minha rotina artificial e, nesse dia, sequei o musgo sorrateiro que, pioneiro, ornamentava a fraga.
enquanto sentada na poltrona da buganvília, desejava que sombras invadissem o céu para o cobrir com um manto espesso. desejava que a luz se apagasse durante muito tempo e que, depois de levantado o manto, nascesse uma nova ordem universal, para que eu, pequena e encolhida, pudesse finalmente esticar os meus ramos em direção ao sol e espalhar-me na corrente do vento.
sempre quis ir ao deserto do Gobi.
a paisagem verde e colorida, com tempo para crescer para dar provas da sua fecundidade ou apenas generosidade, despertou em mim uma inveja melancólica e amarga. nesse momento, desejei eu poder ganhar raízes, enterrar-me na terra e ser livre na síntese do meu alimento, na minha dispersão. livre por não ter que falar sem dizer o que quero. livre do meu corpo que me obriga a ser o animal que sou.
lembrei-me que um dia...
enquanto sentada na pedra de granito da serra, observei a minha pequenez. arfei durante minutos e todo o ar que expeli fez com que os meus pulmões libertassem centímetros da minha rotina artificial e, nesse dia, sequei o musgo sorrateiro que, pioneiro, ornamentava a fraga.
enquanto sentada na poltrona da buganvília, desejava que sombras invadissem o céu para o cobrir com um manto espesso. desejava que a luz se apagasse durante muito tempo e que, depois de levantado o manto, nascesse uma nova ordem universal, para que eu, pequena e encolhida, pudesse finalmente esticar os meus ramos em direção ao sol e espalhar-me na corrente do vento.
sempre quis ir ao deserto do Gobi.
segunda-feira, abril 11, 2011
.vida no estábulo
artrose intelectual, gelatina cerebral. cliché social no quadrado. ideias? não, apenas sorrisos banais com perguntas ocas, crises existenciais com questões superfluas.
mate-se a poesia, a música, o desassossego e alimente-se um parasita faminto e acessível.
não há remédio, estulta, vaidosa, pequena. não há remédio...
mate-se a poesia, a música, o desassossego e alimente-se um parasita faminto e acessível.
não há remédio, estulta, vaidosa, pequena. não há remédio...
quinta-feira, março 03, 2011
.cromo repetido (tirado de um outro baú)
Encontrei este post num dos meus blogs e, apesar de já contar com pelo menos dois anos, o meu ritual do duche matinal permanece igual...
Torneiras Bipolares
Existe uma coisa que me faz sair da cama com maior rapidez: a visualização do meu duche matinal. Após proceder a este ritual, lá me arrasto para o chuveiro, ainda a saborear o chuveiro onírico dos lençóis da minha cama que teimam em me prender. Abro a torneira de modo a posicionar-se na temperatura que eu quero e mal essa temperatura é atingida, eu atiro-me de cabeça e corpo para o chuveiro, de modo a contemplar com cada célula da minha epiderme, a água e o calor que caem sobre mim.
De repente, a água fica gelada, fujo com o braço esquerdo, o braço direito quase fica roxo, num impulso, viro o manípulo para a posição de temperatura máxima, aproximo desta vez o braço esquerdo e este é surpreendido pela elevada temperatura. Nesta fase, tenho o braço direito roxo e hipotérmico e o braço esquerdo vermelho e às manchas com queimaduras de 3º grau.
Volto a tentar regular o manípulo para a temperatura ideal e mal é atingida...eu volto a imergir no banho com um sorriso estúpido de prazer, enquanto o champô massaja as minhas ideias e cabelo. Já de nariz virado para o chuveiro, enquanto o sorriso estúpido de prazer continua preso à minha face, a água, de repente, vem a escaldar. Nariz às manchas, lábios inchados da temperatura excessiva, cabelo ainda com a espuma do champô. Mudo a posição do regulador de temperatura, a água de imediato fica como pedras de gelo a cair sobre os dedos dos pés, que ficam roxos e presos...
Saio da banheira, exausta e com um braço queimado, outro hipotérmico, os lábios inchados, o nariz vermelho e às manchas, os dedos dos pés inertes e roxos e o cabelo colado com os vestígios do champô.
Há que regular estas torneiras bipolares, senão não há quem queira acordar!
Torneiras Bipolares
Existe uma coisa que me faz sair da cama com maior rapidez: a visualização do meu duche matinal. Após proceder a este ritual, lá me arrasto para o chuveiro, ainda a saborear o chuveiro onírico dos lençóis da minha cama que teimam em me prender. Abro a torneira de modo a posicionar-se na temperatura que eu quero e mal essa temperatura é atingida, eu atiro-me de cabeça e corpo para o chuveiro, de modo a contemplar com cada célula da minha epiderme, a água e o calor que caem sobre mim.
De repente, a água fica gelada, fujo com o braço esquerdo, o braço direito quase fica roxo, num impulso, viro o manípulo para a posição de temperatura máxima, aproximo desta vez o braço esquerdo e este é surpreendido pela elevada temperatura. Nesta fase, tenho o braço direito roxo e hipotérmico e o braço esquerdo vermelho e às manchas com queimaduras de 3º grau.
Volto a tentar regular o manípulo para a temperatura ideal e mal é atingida...eu volto a imergir no banho com um sorriso estúpido de prazer, enquanto o champô massaja as minhas ideias e cabelo. Já de nariz virado para o chuveiro, enquanto o sorriso estúpido de prazer continua preso à minha face, a água, de repente, vem a escaldar. Nariz às manchas, lábios inchados da temperatura excessiva, cabelo ainda com a espuma do champô. Mudo a posição do regulador de temperatura, a água de imediato fica como pedras de gelo a cair sobre os dedos dos pés, que ficam roxos e presos...
Saio da banheira, exausta e com um braço queimado, outro hipotérmico, os lábios inchados, o nariz vermelho e às manchas, os dedos dos pés inertes e roxos e o cabelo colado com os vestígios do champô.
Há que regular estas torneiras bipolares, senão não há quem queira acordar!
terça-feira, janeiro 04, 2011
.pretensiosamente uma dissertação sobre a solidão
onde começa/acaba a solidão?
não sei se costumam fazer esta pergunta a vocês próprios, mas eu costumo fazê-la muitas vezes, por isso, caí na tentação de experimentar definir o limiar, pelo menos o meu, da solidão, para balizar, orientar as minhas apreciações sobre a mesma.
na minha opinião, a solidão é per se a ausência de interacção, seja por ausência de um "receptor", por indisponibilidade do "receptor", apesar de estar alcançável pelo "solitário", ou por incapacidade de comunicação do "solitário".
depois de ter chegado a esta solução metódica e quase fria e quase tirada de um manual da faculdade, obsessivamente observei quem me rodeia e quem rodeia quem me rodeia e assim sucessivamente, e, aquilo que constato é bem mais complexo, pois todas as variáveis acima descritas como potenciais vírus causadores da solidão estão, na sua grande maioria, absolutamente interdependentes. ou seja, muitas vezes a ausência de um "receptor" pode ser produto ou da indisponibilidade do mesmo ou a consequência da incapacidade de comunicação do solitário, mas... mais dramático ainda, a ausência de um "receptor" pode ser produto da incapacidade de comunicação do "solitário" que leva à indisponibilidade dos eventuais "receptores".
é uma pescadinha de rabo na boca, um ciclo fisiológico com n variáveis, é um sem fim de razões que se atropelam e interceptam com o mesmo à vontade que as infinitas rectas que se cruzam infinitamente no espaço, etc...
é estranho, é complexo, é desconfortável de pensar. mas a mim conforta-me saber que, caso caia na espiral da solidão, poderei tentar quebrar o ciclo e, acima de tudo, é bom saber que, na grande maioria das vezes, está totalmente dependente de nós a interrupção ou a descontinuação do mesmo.
não gosto da solidão a full-time.
"No solitário, a reclusão, ainda que absoluta e até ao fim da vida, tem muitas vezes por princípio um amor desregrado da multidão e tanto mais forte do que qualquer outro sentimento, que ele, não podendo obter, quando sai, a admiração da porteira, dos transeuntes, do cocheiro ali estacionado, prefere jamais ser visto e renunciar por isso a toda e qualquer actividade que o obrigue a sair para a rua."
Marcel Proust, in 'À Sombra das Raparigas em Flor'
não sei se costumam fazer esta pergunta a vocês próprios, mas eu costumo fazê-la muitas vezes, por isso, caí na tentação de experimentar definir o limiar, pelo menos o meu, da solidão, para balizar, orientar as minhas apreciações sobre a mesma.
na minha opinião, a solidão é per se a ausência de interacção, seja por ausência de um "receptor", por indisponibilidade do "receptor", apesar de estar alcançável pelo "solitário", ou por incapacidade de comunicação do "solitário".
depois de ter chegado a esta solução metódica e quase fria e quase tirada de um manual da faculdade, obsessivamente observei quem me rodeia e quem rodeia quem me rodeia e assim sucessivamente, e, aquilo que constato é bem mais complexo, pois todas as variáveis acima descritas como potenciais vírus causadores da solidão estão, na sua grande maioria, absolutamente interdependentes. ou seja, muitas vezes a ausência de um "receptor" pode ser produto ou da indisponibilidade do mesmo ou a consequência da incapacidade de comunicação do solitário, mas... mais dramático ainda, a ausência de um "receptor" pode ser produto da incapacidade de comunicação do "solitário" que leva à indisponibilidade dos eventuais "receptores".
é uma pescadinha de rabo na boca, um ciclo fisiológico com n variáveis, é um sem fim de razões que se atropelam e interceptam com o mesmo à vontade que as infinitas rectas que se cruzam infinitamente no espaço, etc...
é estranho, é complexo, é desconfortável de pensar. mas a mim conforta-me saber que, caso caia na espiral da solidão, poderei tentar quebrar o ciclo e, acima de tudo, é bom saber que, na grande maioria das vezes, está totalmente dependente de nós a interrupção ou a descontinuação do mesmo.
não gosto da solidão a full-time.
"No solitário, a reclusão, ainda que absoluta e até ao fim da vida, tem muitas vezes por princípio um amor desregrado da multidão e tanto mais forte do que qualquer outro sentimento, que ele, não podendo obter, quando sai, a admiração da porteira, dos transeuntes, do cocheiro ali estacionado, prefere jamais ser visto e renunciar por isso a toda e qualquer actividade que o obrigue a sair para a rua."
Marcel Proust, in 'À Sombra das Raparigas em Flor'
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