sábado, abril 25, 2009

.estórias urbanas

sempre caminhou na rua com a carga do corpo na mala ruidosa, no asfalto negro de chumbo. apenas quando a luz era parca e crua, negra e funda, caminhava ouvindo apenas o ruído das rodas, que eram o chão da sua cabeça e o poço do seu pesar. a cabeça, coberta pelo boné roído pelo tempo, cabisbaixa e obesa de melancolia, seguia em frente, obrigando o corpo a imergir na negritude da cidade.

a luz ao longe nas casas altas e paralelipipédicas e o vento a zumbir a velha canção.

a cidade era a casa.


quarta-feira, abril 15, 2009

.estar só e com sede

chegara a casa de mais uma noite quente e boémia, com pitadas de arejo por um lado e, por outro, um je ne sais quoi de melancolia e despedida. Por isso, nessa noite, enfim, gelei-me com a alegria parva do 1€ por um fino e perdi a conta.

a casa esperava-me só, com as três assoalhadas vazias, o chão de granito polido da entrada frio, o eco da minha presença a reflectir-se nas paredes pastel e a torneira de sede a encher-me o copo de água, repetidamente, para que no dia seguinte, a cabeça não continuasse a andar à roda ou em alta pressão.

concentrada no que pensava e no que havia para sentir, fui interrompida por um som seco e forte atrás de mim. parei e hirta virei-me para trás. novamente, PACK!, olhos esbugalhados, braços junto ao corpo, pescoço para trás, paragem respiratória. tentei identificar com o olhar a origem do som e dividi-me entre o frigorífico e a porta da lavandaria, com janela para o exterior, do lado esquerdo do frigorífico.

será que alguém tinha trepado 4 andares pelo tubo das águas pluviais e entrado pela janela minúscula? ou será que o meu frigorífico tem problemas de coluna e estava a ter uma massagem chinesa feita pelos anõezinhos chineses do líquido congelante?

fiquei estática, com vontade de fugir porta fora, pois, nessa altura tanto me pareceu razoável a teoria do ladrão trepador, como a das massagens do líquido congelante... a única solução para esta chave dicotómica seria abrir a porta da lavandaria de rompante, com o meu fato de super-mulher e, se desse de caras com um ladrão, eliminá-lo com o meu super poder de super-mulher, que seria, talvez, a transmissão em decibéis dolorosos da dolorosa música do andré sardet.

no entanto, não sei se foi da torneira que me encheu de sede, se foi da fraqueza que por vezes se me dá nas pernas, continuei estática, gelada, cheia de medo, a olhar ora para o frigorífico, ora para a porta da lavandaria. não sei quanto tempo assim passei, mas achei que a solução passava por sair da cozinha, fechar a porta da cozinha, fechar a porta do corredor, enfiar-me na cama, com a porta do quarto bem fechada. depois de dormir, saberia lidar ou com o ladrão trepador ou com a fisioterapia do frigorífico.

terça-feira, abril 07, 2009

.salmoura

é ali, ao pé das ondas e das rochas que aqueço a areia, enquanto observo o horizonte melancólico e linear que me separa de mim.

escuto as ondas e apago a distância, enquanto desfio novelos e cores e formas.

é ali, naquele espaço cheio de espaço, que me quero aquecer, enquanto o tempo passa constante e anacrónico de mim.