terça-feira, maio 26, 2009

.distraí-me

prostrada na esplanada de vidro sentei o meu olhar na rocha em frente. ouvi o som cristalino e salgado das ondas e imaginei todos os peixinhos que nadavam ao pé de mim. sorri, como se fizesse parte da brincadeira tola dos cardumes prateados na espuma do mar. não resisti em invejá-los e desejar ser, também, um peixinho de mar a fugir das redes e a deliciar-me com a força das ondas, nadando e fluindo sem fronteiras.

voltei para a esplanada envidraçada, e sacudi o sargaço do ombro, pois vi que estavam a olhar para mim.

quarta-feira, maio 20, 2009

.força centrípeta

O que encontrei...



"Todos os movimentos da sensibilidade, por agradáveis que sejam, são sempre interrupções de um estado, que não sei em que consiste, que é a vida íntima dessa própria sensibilidade. Não só as grandes preocupações, que nos distraem de nós, mas até as pequenas arrelias, perturbam uma quietação a que todos, sem saber, aspiramos.

Vivemos quase sempre fora de nós, e a mesma vida é uma perpétua dispersão. Porém, é para nós que tendemos, como para um centro em torno do qual fazemos, como os planetas, elipses absurdas e distantes." in Livro do Desassossego, Bernardo Soares

terça-feira, maio 19, 2009

.estória na cidade: andante

Sei que não sou a única espectadora, o palco é de muita gente. Gente que se senta no lugar da janela e observa as estórias que viajam durante escassos minutos, mas que nos acompanham até casa e que preenchem, por tempo indeterminado, a imaginação.

Entrou no metro de modo conspícuo, com a roupa cinzenta, a remeter para um estado de alma um pouco enlutado, com o puxo cinzento e as rugas de quem já passou muitas horas ao sol a trabalhar. Ao lado dela, entrou, também, um sujeito quase transparente, encolhido sobre si mesmo, que tapado pelos seus óculos, provavelmente já a precisarem de uma substituição vai há mais de 15 anos, tornou-se disponível para ouvir o que a redonda e curvilínea matriarca tinha para dizer bem alto sobre o passe do metro para reformados. Bem alto, aquela mulher que era de um outro tempo, fazia publicidade ao metro, dizendo que agora ía para todo o lado num instantinho: "Eu agora vou para matosinhos, boavista, s. joão... só não dá para ir pá maia, para gaia... de resto, vou para todo o lado!!! É uma maravilha!!" 

O reformado, transparente e silencioso, acenava com a cabeça, concordando com todas as vantagens que a redonda mulher enumerava bem alto, sem acrescentar nada às suas palavras... 

O metro tinha agora chegado a uma das estações mais cosmopolitas da cidade e, do metro moderno, vejo a sair a mulher anacrónica, com a camisola cinzenta, a saia cinzenta, o avental cinzento, o puxo cinzento, o andar gingão de quem já foi mãe de sete e, a condizer com o metro, nos pés calçava uns crocs amarelos. 

Surpreendida com a conjugação de todos os factores, esbocei um sorriso para mim própria, observando a ironia de todo o episódio. Ao mesmo tempo, entrou uma mulher, geométrica, rural, com um fato de fibra, mal assentado ao corpo, com cabelo preto vivo e penteado de senhora de idade da aldeia, que sem uma ruga ou expressão, tinha uns óculos sem jeito. Senti o desconforto dela enquanto ser feminino, desviei o olhar, para ela não se sentir observada, mas não resisti em decifrar as letras que estavam na pastinha que ela religiosamente carregava: Técnicos Oficiais de Contas. Era contabilista.

Próxima paragem... Carolina Michaelis. Saí.

quarta-feira, maio 13, 2009

.estórias urbanas: as mulheres e as aves canoras

margarida eufémia, vivia no 2º esquerdo do prédio das portadas brancas. saía todos os dias para o trabalho, gingona e bem disposta, a ouvir a canção que um tal de melro lhe cantava frequentemente. embrulhada pelo chilrear, aquecia o peito e cantava um sorriso infinito, que fazia desabrochar todas a flores por que passava.

a sra d. vitória, dona do quiosque lá do bairro, dizia, sempre que via margarida eufémia a passar nesta figura, que o melro que ela ouvia cantar era um bandido e que mais dia menos dia, margarida eufémia iria passar na rua de lágrima no canto do olho, fazendo murchar todas as flores que encontrasse na rua e que o seu coração iria definhar de tristeza... mas margarida, alheia a tudo, continuava na sua nuvem a passear-se pelo bairro, exibindo a sua felicidade, para todos os seus vizinhos, e contagiando a atmosfera circundante...

um dia, margarida saiu do seu prédio, com outro ar, um ar mais decidido, mais assente no chão. A sra d. vitória desconfiou logo... O melro já tinha feito das suas vadiagens... Não resistiu e perguntou a margarida: "Então, guidinha? Como vai o melro?" ao que margarida eufémia respondeu: "melro? eu agora tenho um colibri"

a sra d. vitória pensou para si mesma, que no tempo dela as moças não tinham esta sorte... se ela soubesse o que hoje sabe, se calhar não estaria com o mesmo pardal há 25 anos, sempre gostou mais de piriquitos.

 

domingo, maio 10, 2009

.estória na cidade: esferovite

com os papéis na mão, retraíram-se os músculos no coração e no lugar comum pequeno e asfixiante, enquanto o trânsito aquecia a cidade.

depois, o tempo e a memória criaram a bifurcação volátil do anterior sentir e a única coisa que ficou, foram bolas de sabão.

agora, o horizonte está livre de toda a geometria sinuosa dos velhos edifícios. é tempo de projectar a nova cidade... no esferovite.